Aborto urgente 2

Parafraseando Mateus 13:42, a vida não é apenas “choro e ranger de dentes” e, na seara política, devemos ir além do que nos parece ser apresentado como politicagem, corrupção, locupletamento e uso dos cargos públicos para benefício próprio.

Gostei muito do que a Deputada Estadual Ana Perugini disse em uma reunião nossa: sempre falamos muito de luta quando nos referimos às políticas públicas, mas não deveríamos nos esquecer da dimensão afetiva da política. É através dela que temos condições de transformar a vida das pessoas.

Estou dizendo isso tudo para fundamentar uma autocrítica à coluna vespeiro. Sempre analisamos, criticamos e nos posicionamos em relação a assuntos, por vezes, muito pesados e sensíveis; tem sido assim principalmente nessas duas últimas semanas diante do apelidado PL do estuprador.

Se nos deixarmos levar pela morbidez, perderemos de vista tudo o que de belo esteticamente existe, por isso, passarei a, sempre que possível e o espaço permitir, iniciar essas colunas com uma dica de livro, música, poema, filme, autor, etc.

A de hoje será um livro de 13 contos e uma Explicação de Clarice Lispector – A via crucis do corpo –, datado de 1974 e 30 anos após seu primeiro livro romance Perto do Coração Selvagem. Ela adverte no seu introito: “Fiquei chocada com a realidade. Se há indecências nas histórias a culpa não é minha”. Nas histórias, olhou de frente o desejo, a sordidez e a ferocidade humana em plena repressão dos anos 70. É um livro que vale a pena ler e de possível leitura em um só respiro.

Como prometido na semana passada, vamos dar continuidade ao tema do aborto e suas repercussões após o Projeto de Lei 1.904/2024 entrar em regime de urgência no último dia 12 de junho.

Não poderia ser diferente que um assunto multifacetado desta espécie causasse grande repercussão, a ponto de se deixar de lado qualquer outra pauta, como a da manutenção dos juros em 10,5% pelo Banco Central, apesar da inflação estar abaixo de 4%.

Arthur Lira, Presidente da Câmara dos Deputados, acabou gastando cartucho político seu para pautar regime de urgência para um projeto de lei que altera algo vigente desde 1940 no Brasil – o crime de aborto do Código Penal Brasileiro. Tanto é assim que na última terça-feira, dia 18 de junho, teve que fazer um pronunciamento que acabou indo na contramão do que ele mesmo tinha decidido.

No pronunciamento disse que nenhum assunto importante para o Brasil teria sido encaminhado sem debate. Ora, então por que estabeleceu regime de urgência para o PL? Que na prática é ir diretamente para o plenário sem passar por discussões nas comissões.

Afirma ainda, contrariamente ao PL 1904, que nada iria avançar na Câmara que vilipendiasse os direitos adquiridos pelas mulheres. O que também é um contrassenso, já que, ao se limitar o alcance da autorização legal para o aborto em caso de estupro, fere-se o direito atuais das mulheres.

No final das contas, a “casca de banana” que o Congresso costuma jogar para o governo quando o tema são os costumes, acabou servindo para o escorregamento dos próprios parlamentares.

Uma discussão institucional de bom nível sobre o aborto se deu em 2012 no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, em que o STF julgou a possibilidade de interrupção da gravidez em caso de feto anencefálico, que se juntou às autorizações já permitidas pelo Código Penal.

Na ocasião, foram ouvidas entidades e houve bastante pressão religiosa às portas do tribunal, tudo de acordo com o trabalho político-educacional a cargo delas mesmo.

Vou pontuar uma questão muito interessante extraída do voto da ministra Rosa Weber, que se baseou na filosofia da linguagem e do direito para fundamentá-lo: o Direito é o mundo do dever ser, a vida é o mundo do ser. Ou seja, a característica primordial do Direito é o estabelecimento de normas de observância obrigatória e, caso não cumpridas, o Estado as fará cumprir por meio da força.

Há outros tipos de normas, como as religiosas, por exemplo, em que as sanções são divinas. Faz parte da luta política tentar que sua norma religiosa, ou não, faça parte do mundo jurídico para daí poder usar a força do Estado para que seja observada.

Algo pontuado pela ministra, e que é chamado de falácia naturalista, é que o fato de uma ciência descrever algo como vida, não necessariamente ela entrará no mundo das normas jurídicas; não entrará automaticamente no mundo do dever ser. No mundo do dever ser impera a lógica das normas deste mundo.

Por que então se permitiu a interrupção da gravidez em caso de fetos anencéfalos? Porque, para o Direito, interessa a vida viável e é este o bem jurídico protegido por suas normas. Se a vida não é viável, como no caso dos anencéfalos, o Direito não a protegerá e a gravidez poderá ser interrompida.

O assunto ainda está longe de ser pacificado no Brasil, mas pelo menos por ora, parece que as normas das forças reacionárias foram freadas pelas forças populares.

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