Ora, muletas

O Lula tem dado uns tropeções em conceitos que parecem contradizer seu governo, ou pelo menos o que pretende seu governo. Nestes tempos em que qualquer coisa que viole o “politicamente correto” parece crime inafiançável, achar feia alguma pessoa ou feia a situação em que ela se encontra, é uma coisa que pega muito mal.

Alguns interpretam como gafe, outros como ofensa grave. Disse que não vai ser filmado depois de fazer a cirurgia na cabeça do fêmur numa situação que acha feia: “Vocês não vão me ver de andador, de muleta, vão me ver sempre bonito, como se eu não tivesse sido sequer operado”. No noticiário geral, a Folha de S. Paulo qualificou a fala dele como gafe. Mas Jairo Marques, colunista da própria Folha, cadeirante, interpretou como sendo uma prova de que Lula é “capacitista”, associa andador e muleta à vergonha e à feiura, prática condenável pela Lei Brasileira de Inclusão.

Certo, ele, Jairo Marques, sabe bem o que diz, conhece bem o assunto. E diz que não tem perdão.

Não justifico a fala de Lula, que certamente vão dizer que foi uma brincadeira infeliz. Coisas “normais” ou que pelo menos não ofendiam muito até há alguns anos, agora são consideradas agressivas, ofensivas e até criminosas. E ai de quem não se adaptar.

Mas quero lembrar de uns tempos em que andei de muletas. Na época, eu me lembrei de uma frase que ouvia na infância, quando alguém dizia que sofreu demais: “Sofri mais do que sovaco de aleijado”. Comprovei: muleta, pelo menos nos primeiros tempos de uso, agridem os sovacos desacostumados, que sofrem mesmo.

Aconteceu em 1977, quando quebrei o tornozelo em dois lugares, fiquei com a perna esquerda engessada até um pouco abaixo do joelho, e tive que usar muletas. Algumas daquelas pessoas tipo Poliana, que queriam fazer a gente pensar que foi um “mal menor”, falavam: “Ainda bem que foi a perna esquerda”. E eu respondia que sou canhoto do pé, o que sou de verdade. Era o pé que eu usava pra chutar nas minhas peladas de futebol, e passaria um bom tempo pra me recuperar.

Voltando às muletas, mesmo enrolando uma toalha de rosto em cada uma delas, no lugar em que o sovaco se apoia, para ficar menos desconfortável, era um sofrimento. Em alguns meses que usei, não me acostumei, achava um sofrimento. Se era feio ou vergonhoso… não concordo. Vergonhoso, de jeito nenhum. Feio? Muletas não enfeiam nem embelezam, mas entendo Jairo Marques: há muito preconceito com pessoas usuárias delas.

Não aguentava ficar em casa, e um dia fui ao Riviera, bar que gostava de frequentar, na esquina das avenidas Paulista e Consolação. Um bar que continua lá, fechado e reaberto algumas vezes, mas não é o mesmo, frequentável por gente mais ou menos dura, com pouca grana. Era ponto da chamada “esquerda festiva” naquela época. Era ponto também de frequentadores do Cine Belas Artes, do outro lado da avenida Consolação, e antes e depois de cada sessão iam bebericar ali. 

A fratura e o gesso tinham mais de um mês e, sem namorada, descobri que nenhuma mulher topava sair com um cara andando com muletas. Pelo menos comigo. Cheguei até a paquerar no hospital, quando trocava o gesso, uma moça que também estava com uma perna engessada e andando com muletas, mas nem ela topou. Tive que me conformar. Então, nessa noite, fui ao Riviera com intenção de apenas tomar uns chopes, encontrar algum conhecido e bater um papo. Cheguei faltando uns vinte minutos para as dez horas.

Aí ocorreram umas coisas que se eu fizesse hoje seria excomungado. Não faria, embora a parte “pior” fosse apenas uma “brincadeira”.

Mal terminei o primeiro copo, tinha acabado a sessão das oito no cine Belas Artes, e entrou um bando de gente no bar. Não havia mesas vazias para todo mundo. Uma moça deu uma olhada geral, talvez tentando encontrar algum conhecido já ocupando uma mesa e bateu os olhos em mim. Não me conhecia, mas queria sentar-se um pouco, beber alguma coisa, e eu estava sozinho numa mesa. Pediu licença e tomou assento de frente pra mim.

Conversamos bebericando, discutimos o filme, conversa vai, conversa vem, ela me disse meio insinuante que tinha que ir embora e perguntou se eu não queria “tomar a última” e conversar mais um pouco na sua casa. Topei eufórico.

Paguei a conta, peguei as muletas que estavam encostadas na coluna e só aí ela reparou que eu estava de perna quebrada e dependia daqueles objetos para andar. Revirou nos pés! Desconversou, disse que, pensando bem, estava com sono e coisa e tal, era melhor deixar o resto do papo pra outro dia. Mostrei que o gesso só ia até abaixo do joelho, que não atrapalhava, mas não teve jeito. Foi embora, me deixando assanhado.

Sentei de novo e continuei bebendo. Nem tinha passado direito a excitação provocada pela moça, pouco antes da meia-noite terminou a sessão das dez no cinema, entrou outro bando de gente, outra moça veio sentar-se à minha mesa. Tudo igual. Só que aí eu me preveni:

— Pode sentar, mas quero te mostrar logo: está vendo esses calos na minha mão? — mostrei os calos feitos pela muleta (não é só o sovaco que sofre com a muleta, não). 

— Sim, o que é? — perguntou já sentada.

— É de tanto tocar punheta. Todo dia eu toco. Tá vendo essas muletas? São minhas. Tô com a perna quebrada e ninguém trepa comigo. Então, se você quiser conversar normal, tudo bem. Se for pra fazer provocação, me deixar de pau duro e se mandar porque muleta é baixo astral, aí é melhor a gente nem conversar.

Ficou atrapalhada com a minha veemência. Disse que só queria tomar um chope, tomou e se mandou.

Continuei bebendo, sozinho, até perto das 3h da manhã. Aí, saí pra pegar um táxi, mas, bêbado, em vez de esperar um carro na porta do bar, fui caminhando até o ponto de ônibus, a uns duzentos metros. E caminhar duzentos metros bêbado e de muletas não é muito fácil. Ficar parado não tem problema: com um pé e duas muletas no chão, forma-se um tripé bem estável. O duro é dar um passo. Fui até o ponto de ônibus (para pegar táxi, lembro mais uma vez — ah, cabeça de bêbado!) na maior dificuldade.

Faltando uns dez metros para chegar ao ponto, duas moças de minissaia esperavam ônibus e me olhavam. Parei, olhei para elas também e resolvi “brincar” com elas, gritei bem alto:

— Arrá! Vou comer vocês duas!

Disparei numa corrida de muletas rumo a elas, com intenção de parar pertinho, mas elas se desesperaram e debandaram Consolação abaixo, gritando.

Comecei a gargalhar, enquanto dava mais um passo, perdi o equilíbrio e me vi caindo, inapelavelmente, de cara no chão, tentando diminuir o impacto com as mãos, largando as muletas.

Além da perna engessada, andei uns bons dias com o nariz e a testa esfolados.

Publicado originalmente na Fórum

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